Director do Serviço de Cooperação da Fundação Gulbenkian e ex-combatente do PAIGC conta como evoluiu o seu país
Que momento do dia da independência de Cabo Verde guarda na memória?
O içar da bandeira que significou a soberania do país provocou-me um arrepio que jamais esquecerei. Mas aconteceu-me outro episódio que deixou marcas. Nas vésperas chegou gente da ONU e de países amigos. Tivemos dificuldades para instalar essas pessoas. Sobrou um membro da delegação da OUA e não sabíamos onde instalá-lo. A solução foi colocá-lo no meu quarto. Como não tinha onde ir, sentei-me na Praça Grande à espera do Dia D.
Cabo Verde é um caso de sucesso em África, com uma economia e uma democracia estável. A que se deve isso?
Isso aconteceu genuinamente. Mas reconheço que a implosão do regime soviético teve uma influência benigna porque não provocou a mudança no sistema político; acelerou-a. Não alinhámos inteiramente com os países que nos apoiaram na luta contra o colonialismo e nunca desistimos de ter um juízo crítico sobre a nossa situação. Desde cedo beneficiámos de uma influência dos emigrantes nos EUA e na Europa. Houve uma mistura de visões que trouxe um mundo moderno.
Cabo Verde é aliás um raro exemplo em que o regime multipartidário deu lugar à alternância no poder.
Penso que isso aconteceu porque não houve adopção de modelos para agradar doadores. Mesmo durante o regime de partido único, existia a consciência de que esta não era uma solução óptima. Por isso, a sociedade civil exerceu alguma influência. Foi o partido único que promoveu o multipartidarismo – caso inédito em África. Houve uma aceitação das regras do jogo assumida até às últimas consequências o partido no poder perdeu as eleições, aceitou o resultado, fez a oposição e regressou ao poder.
E porque é que isso não aconteceu com os outros PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa)?Cabo Verde, entre os PALOP, está mais próximo de São Tomé e Príncipe. São nações que se assumem como Estado, têm a consciência de pertencerem a uma mesma identidade. Esta coisa de ser cabo-verdiano é uma força que ultrapassa as fronteiras do país e é uma grande vantagem face aos outros PALOP. Outro facto que terá beneficiado o país é que existia um nível de instrução mais elevado. Não terá sido por generosidade do regime, mas creio que isso correspondia a uma estratégia do sistema colonial que distribuía funções às diversas colónias. Cada uma das outras colónias tinha as suas riquezas. Porque isso não acontecia com Cabo Verde, terá existido uma intenção de utilizar a população como intermediários entre o império – por isso vamos encontrar nos últimos anos do colonialismo cabo-verdianos em posições intermédias – e as outras colónias. Sejam quais forem as motivações, Cabo Verde beneficiou de um nível de instrução mais elevado. O sentimento de nação, aliado ao nível de instrução e às influências da emigração fizeram crescer bastante cedo um espírito de cidadania que poderá explicar o percurso do país.
Diz que a força de Cabo Verde vem do continente africano. Mas, o embaixador Onésimo Silveira diz que o país está mais próximo da Europa. Afinal de que é feito o povo cabo-verdiano?
Na análise dos factos históricos encontra-se em Cabo Verde africanos e europeus numa situação de desequilíbrio. A maioria dos nossos ascendentes veio do continente africano. Mas quem detinha o poder eram os europeus. Pela força das circunstâncias, desenvolveu-se uma miscigenação biológica e cultural mas num contexto de domínio dos valores europeus. A origem europeia existe na raiz dos cabo-verdianos mas, para mim, há um peso maior de África. Há uma tendência – que é humana – de identificar-se com aquilo que nos é apresentado como positivo. África é apresentada sistematicamente como um inferno. É normal que a reacção emocional seja de desvalorizá-la. Sou contra isso porque essas atitudes são uma reacção a uma imagem virtual. Se África fosse apresentada de forma positiva, sem ocultar o negativo, mas através de uma paradigma de isenção, haveria menos cabo- -verdianos com estas susceptibilidades de aproximação com a Europa – que existe de facto – , mas não deve sobrepor-se a África
É por isso que é contra a adesão de Cabo Verde à União Europeia? Criticou Mário Soares e Adriano Moreira quando apresentaram a petição.
Sem questionar o sentimento deles – sei que são amigos de Cabo Verde – é preciso separar as águas amigos de um lado, negócios do outro. Ambos sabem que Portugal é pequeno e pouco desenvolvido, mas tem algumas vantagens em ser um país marítimo. A Europa está agora em crise. Por um lado há a UE e, por outro, os interesses particulares de cada um dos países. Portugal procura alertar os 25 da UE para o facto de existir. Não critico o facto de recorrer a um estatuto de intermediário de outros países, mas não se pode defender uma posição que é do interesse de Portugal como se se tratasse de uma vantagem para Cabo Verde. E não é sério pensar que uma proposta dessa natureza seja feita no exterior sem corresponder a um projecto claro do Governo desse país. Também não faria sentido uma figura pública de Cabo Verde dizer aos portugueses para aderirem à União Africana. Quando o presidente da Comissão Europeia diz talvez ser possível uma adesão indirecta por via de um país europeu… se existir alguém que fique feliz com isso, então que fique. Para mim isso significa anular a nossa soberania e é um contra-senso porque Cabo Verde provou, para surpresa de muitos, que valeu a pena ser independente e que consegue manter-se independente.
Kátia Catulo
DN-Rodrigo Cabrita
Fonte: DN
Deixe um comentário