Perguntava-me há dias o meu amigo Tchindo se eu conhecia Nhô Ambroze. Quem, naquelas redondezas de Ribeira da Torre, não conhece Nhô Ambroze, Tchindo?? Desde muito antes de eu ser criança, a figura de Nhô Ambroze já circulava pelos vales e povoados da ilha toda, com o seu cajado na mão esquerda e um saco pendurado no ombro direito, onde guarda religiosamente todos os seus pertences.
Pernas arqueadas, as calças roladas até o baixo-joelho, a barba quase sempre por fazer, emoldurando uns olhos avermelhados e cavos que nos fitam de um jeito tal que não sabemos se de filósofo, asceta ou mendigo, Nhô Ambroze passa os dias a circular em quase-silêncio de um povoado a outro, andando pelos vales num aparente sem rumo que o leva ora aos confins de Ribeira Grande, ora às ruas de Povoação e Ponta do Sol ou às veredas de Fajã, sempre com o seu cajado e o seu saco pendurado ao ombro. Quando menino-estudante no externato de Povoação morria de medo do olhar de Nhô Ambroze…
Ninguém sabe ao certo de onde veio Nhô Ambroze. Uns dizem que de lá das bandas do Norte, meu pai tem quase certeza que ele é de Ribeira da Cruz, em Porto Novo, mais precisamente dos lados de Martiene. O facto é que apareceu pelos vales da região e ali se fez uma figura lendária e conhecida de todos, sabe o nome de quase toda a gente, quem é parente de quem, quem viajou para onde (adé répéz mótche, bô ‘n ê fi de Nhá Silva má Nhô Junzim lá de Fajã, e subrin de Nhá Marquinha que morreu em 1983?). As pessoas mais idosas nutrem um respeito quase mítico por Nhô Ambroze. Dele dizem que tem o dom da adivinhação, que conselho de Nhô Ambroze sobre chuva ou não, é para se levar em conta na hora de preparar o milho e a enxada para as sementeiras, que uma praga rogada por Nhô Ambroze tem a força de uma maldição, que Nhô Ambroze é batióde, etc., etc..
Mas o que faz a fama de Nhô Ambroze espalhar-se pela ilha toda e até atravessar o mar-de-canal é a sua impressionante e quase sobrenatural capacidade para fazer contas “de cabeça”. Analfabeto, Nhô Ambroze consegue em apenas alguns segundos responder a perguntas como “quantas pedras de calçada foram utilizadas na estrada de Porto Novo a Povoação” (Nhô Ambroze pergunta-nos quantos quilômetros tem a estrada – 36, respondemos – depois dá algumas passadas medindo a largura do troço onde estamos, fica alguns segundos em silencio, e dispara o resultado…). Há quatro anos atrás, trabalhava ainda em Santo Antão, e resolvemos testar esta “fama” de Nhô Ambroze (do qual, confesso, não acreditava muito). De calculadora na mão para conferir a resposta, pedi-lhe que me dissesse quantos dias de vida eu tinha naquela altura. Quando é que nasceste, rapaz? Vinte e um de setembro de mil novecentos e setenta e seis, Nhô Ambroze. Faz-se um silêncio expectante. Mais silêncio. Nhô Ambroze não diz nada. Peguei-o!, pensava cá para comigo já em júbilo, quando Nhô Ambroze lança-me aquele olhar cavo que nos metia medo quando meninos, e diz um número. Corri para a calculadora para conferir, cálculo vai, cálculo vem, bingo!, o número que a máquina nos mostra é ligeiramente diferente do de Nhô Ambroze. Com uma quase indisfarçada satisfação, digo-lhe que errou o cálculo. Nhô Ambroze olha-me uma vez mais em silêncio, não esboça um gesto sequer, vira as costas e vai saindo do bar devagar, quase medindo os passos. Quando vai a atravessar a porta, vira-se lentamente para mim – bô ‘squ’cê d’ óne bissexte, mucim de Nhá Silva…
Marculino Silva Lima (CHALA) diz
Adorei o artigo!
Isto retrata a mais verdadeira história de Nhô Ambroze. Ele é realmente natural de Martiene.
Para mim Nhô Ambroze é uma das figuras mais míticas de S.Antão.