Deitado na cama do hospital, extraordinariamente elegante no seu pijama azul-claro debruado com fio azul-escuro, Bana continua a ser o mesmo homem grande que sempre foi. No auge do sofrimento e no auge da sua fragilidade, este homem revela-se no auge da dignidade.
Parece um príncipe negro e a sua majestade impressiona todos os que o visitam. Está deitado mas permanece de pé.
Lindo, tranquilo, muito educado e cerimonioso, abre um sorriso a todos os que aparecem e agradece comovido cada visita. Mesmo quando não consegue abrir os olhos, o sorriso fica sempre aberto.
O quarto do hospital onde Bana está internado é moderno, acolhedor e luminoso. Uma das paredes é um vidro inteiro, muito cinematográfico, que deixa entrar a luz do dia e a vida de todos os dias que se vive lá fora.
Esta janela rasgada sobre o movimento da cidade e o parque denso de árvores ao longe é uma espécie de ecrã gigante em que o céu tem mais expressão do que a terra mas onde o filme de pessoas e carros a passar constantemente lembra que existimos e pertencemos a esta imensa multidão que corre de um lado para o outro, sempre cheia de pressas e horas para tudo.
No hospital as urgências são diferentes e o tempo vive-se de outra maneira. As horas demoram e cada minuto conta. Os dias sucedem-se entre mil e um sobressaltos que trespassam a quietude densa medida pelas gotas de soro que escorrem lentamente por tubos transparentes ou a frequência cardíaca projectada em máquinas que mostram gráficos monótonos e apitam de vez em quando.
Quando a noite cai há sempre um ou outro momento de silêncio em que as dúvidas pesam e as lágrimas correm sem que seja preciso escondê-las.
Bana, o grande senhor
Bana, o grande senhor, o maior entre os maiores cantores cabo-verdianos, é um homem incrivelmente alto e admiravelmente forte. Parece sempre muito seguro. Não se queixa, não faz muitas perguntas, não quebra nunca nem desiste facilmente. Guarda para si e para a intimidade dos seus as questões sagradas e os pensamentos mais profundos. Reservado e terno, acolhe os que o visitam com o tal sorriso que ilumina as sombras e responde pausadamente às perguntas. Fala um português bonito e usa palavras antigas, que já poucos sabem usar. Enche-nos de certezas, de ternura e respeito. Percebe-se a veneração sentida de todos os que o vêm visitar. Tantos, tão amigos e tão queridos que, em certos dias, o corredor largo e a ampla sala de espera do hospital parecem demasiado pequenos para os acolher a todos.
Vêm de muitos lados e de quase todos os países. São músicos, cantores, poetas, intelectuais, políticos, embaixadores, parentes, gente conhecida e gente anónima. Têm laços fortíssimos com Bana, sentem-se parte da família e querem estar próximos. Muitos vêm agradecer o que fez por eles, expressar a vénia da sua gratidão e mostrar que o trazem no coração. Ele olha para todos com aquele seu olhar profundo e agradece com acenos lentos, por vezes cansados.
Bana tem mulher, oito filhos e nove netos. Dona Aquilina, a mulher, é outro anjo negro de sorriso rasgado e uma ternura comovente. Permanece firme, à sua cabeceira, com amor, humor, sabedoria e dignidade.
Baptizado como Adriano Gonçalves, o cantor foi toda a vida chamado pelo seu petit-nom, ou o “nominho”, como dizem os cabo-verdianos com alegria e voz cantada. Na realidade, o seu “nominho” é universalmente conhecido e não há um africano no mundo inteiro, dentro ou fora do seu continente, que não tenha dançado ao som das mornas de Bana. Mais, não há no mundo um único cabo-verdIano que não se comova com a sua voz, que não chore ou “vá a correr chorar para o ombro de alguém” quando o ouve cantar Lua Nha Testemunha, a última composição do lendário B.Leza, músico que Bana canta, celebra e perpetua como ninguém.
Celina Pereira, poetisa de Cabo Verde, ri e assume esta necessidade de correr para o ombro de alguém sempre que ouve a voz de Bana e depois fala com naturalidade da eterna saudade que os cabo-verdianos sentem da sua terra. A diáspora está espalhada pelo mundo inteiro e Bana acompanha os seus onde quer que eles estejam, sejam eles quem forem e façam eles o que fizerem. Enche-lhes a alma e aquece-lhes o coração com aquela sua voz calorosa, quente, apaixonante.
Bana é um homem muito grande, desmedidamente alto, que caminha devagar e nunca se atrapalha. Na saúde ou na doença sempre teve um ritmo próprio e um balanço muito seu. Um swing musical envolvente que prende e transporta para um mundo à parte. Quando ele começa a cantar, todos se calam e tudo fica certo.
Bana tem mãos grandes que seguram as nossas e nos enchem de confiança e também tem uns pés enormes que lhe dão graça e provocam admiração pelo tamanho mas, acima de tudo, por conhecerem a terra que pisam. O mundo à sua volta pode tremer ou desabar que Bana permanece sempre de pé, inteiro, lúcido e tranquilo. Este seu tamanho físico corresponde a um talento musical sem medida, a uma estatura intelectual invulgar e a uma elevação moral que fazem dele um homem muito completo. E muito bom.
A tudo isto Bana acrescenta uma voz incomparável que transforma os corações e converte as almas. A alma com que canta as suas mornas e a voz que empresta aos antigos e novos compositores é uma alma consagrada e daí a sua inspiração. Como se a sua voz também fosse uma voz redentora, que une o que anda disperso pelo mundo e salva o que parece perdido.
Bana gravou mais de quarenta discos, foi e é o mais fiel intérprete do célebre e saudoso B. Leza com quem aprendeu a cantar. Conquistou Cabo Verde com Nha Terra e Pensamento e Segredo e converteu-se rapidamente numa lenda viva. Dentro e fora das ilhas, Bana está para as mornas e para a música cabo-verdiana como a Amália para o fado e o Eusébio para o futebol. Pela sua mão chegaram a Portugal e ao mundo músicos e cantores como Tito Paris, Paulino Vieira e Leonel Almeida, entre tantos outros talentos reconhecidos.
Figura imponente, Bana comove plateias inteiras quando canta Maria Barbara e as suas mornas inconfundíveis. Celina Pereira diz que ele é “o fio condutor entre sucessivas gerações de músicos cabo-verdianos” e todos reconhecem o dom. Não apenas o dom musical, mas a propriedade com que canta a saudade e o talento com que enraíza no mundo esta cultura sem igual que é a cultura de Cabo Verde.
E é por tudo e tanto que fez e continua a fazer, mesmo estando deitado numa cama de hospital, que apetece celebrar o homem e o músico, esperando que toda a sua força e fé o ajudem a melhorar para poder voltar rapidamente a cantar.
Laurinda Alves
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